Gary “Mani” Mounfield entrou na história da música britânica não como um rosto de capa de revista, mas como a espinha dorsal de duas das bandas mais influentes do Reino Unido. Morreu nessa quinta (20), aos 63 anos, deixando um legado que transcende as notas que tocava. Seu falecimento marca o fim de uma era para gerações de fãs que cresceram ouvindo seus baixos groovados atravessarem as ondas do rádio e os estádios lotados da Madchester.
Nascido em 16 de novembro de 1962, Mounfield ingressou nas Stone Roses em 1987, substituindo Pete Garner em um momento crucial para a banda. Não era apenas um músico preenchendo um vazio. Era o arquiteto sonoro que ajudaria a definir o som “baggy” que tomaria conta de Manchester no final dos anos 80 e início dos 90. Com Ian Brown na voz, John Squire na guitarra e Alan “Reni” Wren na bateria, Mani formava um quarteto que combinava influências tão diversas quanto indie, punk, rock psicodélico, dance, funk e reggae. Nenhuma combinação era mais improvável, e nenhuma funcionava melhor.
O álbum de estreia de 1989 foi uma declaração de intenção. “I Wanna Be Adored”, “She Bangs The Drums” e “I Am The Resurrection” não seriam as mesmas músicas sem as linhas de baixo de Mani. Elas não apenas acompanhavam as melodias, elas as sustentavam, as movimentavam, as faziam respirar. Aquele Rickenbacker 4005 com influência de Jackson Pollock que ele usaria depois do álbum de estreia não era apenas um instrumento. Era uma declaração visual de que o baixista também era um artista. O álbum alcançou o top cinco britânico e recebeu certificação de cinco vezes platina. Não era apenas sucesso comercial, era fenômeno cultural.
Em 1994, “Second Coming” chegou com um som mais pesado, mais rochudo. Mani continuava ali, sustentando cada riff, cada mudança de ritmo. O álbum foi gravado em Rockfield Studios, em Monmouth, País de Gales, durante 13 meses intensos. Foi durante essa maratona criativa que Mani conheceu Imelda, a mulher com quem passaria os próximos 31 anos de sua vida. Ela morreria em novembro de 2023, vítima de câncer, deixando dois filhos gêmeos nascidos em 2013. Naquele período de 2018 a 2025, quando a carreira musical entrou em hiato, Mani e Imelda dedicaram-se a arrecadar fundos para instituições de câncer, como o hospital Christie em Manchester. Nem mesmo a doença que consumia sua esposa o impediu de pensar nos outros.
Mas em 1996, quando as Stone Roses se dissolveram, Mani poderia ter desaparecido. Muitos músicos em sua posição teriam. Ele não. Em 1997, ingressou na banda escocesa Primal Scream, um grupo que ele próprio havia identificado como uma das apenas três bandas que estaria disposto a integrar, ao lado de The Jesus and Mary Chain e Oasis. Seu primeiro trabalho com eles foi “Vanishing Point”, um álbum que marcaria sua presença de forma indelével. A faixa “Kowalski”, influenciada por krautrock, carregava sua assinatura sonora. Mani gravaria mais quatro álbuns com Primal Scream: “XTRMNTR” (2000), “Evil Heat” (2002), “Riot City Blues” (2006) e “Beautiful Future” (2008). Durante 15 anos, ele foi parte essencial da evolução daquela banda, trazendo a mesma consistência, a mesma sensibilidade que havia demonstrado com os Roses.
Enquanto isso, Mani também participava de outros projetos. Em 2002, teve um papel no filme “24 Hour Party People”, documentando a história cultural de Manchester. Mas talvez seu projeto mais intrigante tenha sido o Freebass, um supergrupo formado por três baixistas lendários: Andy Rourke, do The Smiths, Peter Hook, de Joy Division e New Order, e o próprio Mani. Três gerações de baixistas britânicos tocando juntos. O projeto lançou seu álbum de estreia, “It’s a Beautiful Life”, em 2010, mas se desfez sem alcançar o potencial que promete. Ainda assim, representava algo raro: três mestres de seu instrumento reconhecendo uns aos outros como pares.
Em 18 de outubro de 2011, Mani anunciou que havia deixado Primal Scream. Não era para se aposentar. Era para reunir-se com os Roses. A reunião de 2012 foi massiva. Dois shows em Heaton Park, Manchester, em junho. Depois vieram turnês, concertos espalhados pelo Reino Unido. A banda lançou dois singles em 2016, mas nenhum álbum completo seguiu. Velhas tensões ressurgiram. Em 2017, após um show em Hampden Park, Glasgow, tudo terminou novamente. Ian Brown disse ao público: “Não fique triste porque acabou, fique feliz porque aconteceu”. Mani estava ali, tocando, sustentando aquele momento final.
Nos últimos anos, Mani permaneceu no olho público não como um músico em turnê, mas como uma figura querida da cultura de Manchester. Aparecia em podcasts, discutia futebol na televisão e rádio como um torcedor apaixonado do Manchester United, participava de eventos de caridade. Em outubro passado, quando completou 63 anos, Tim Burgess, do The Charlatans, postou uma foto dos dois juntos com a mensagem: “Um dos melhores em todos os sentidos. Que amigo lindo”. Apenas um mês depois, Mani anunciava uma turnê de palestras para 2026-2027 intitulada “The Stone Roses, Primal Scream, And Me”, onde recontaria suas experiências de quatro décadas. Não acontecerá.
Seu irmão Greg anunciou a morte no Facebook “com o coração mais pesado”. Os tributos vieram de todos os lados. Liam Gallagher, do Oasis, escreveu: “Em total choque e absolutamente devastado ao ouvir a notícia sobre Mani. Meu herói, RIP R Kid”. Peter Hook, de Joy Division, postou: “Oh Deus. Mani… as palavras me faltam desta vez, realmente faltam. Não consigo acreditar. Enviando todo meu amor para sua família. Isso é tão triste. RIP, amigo. Love Hooky”. As Stone Roses escreveram: “RIP nosso querido irmão Mani. O melhor baixista e amigo que poderíamos ter desejado”.
Liam Walsh, um publicista de música de Manchester que conhecia Mani há 40 anos, capturou algo essencial sobre ele: “Ele era uma pessoa rara. Sempre me cumprimentava com tal calor. Estava sempre feliz em me ver, e eu estava sempre feliz em vê-lo. Tinha a risada mais contagiante”. Walsh estava a caminho de um evento da indústria musical quando soube da morte. Ao entrar no local, “Fools Gold” estava tocando na barra. Aquele baixo famoso de Mani. Seu legado viverá para sempre.
Gary “Mani” Mounfield nunca foi o tipo de músico que dominava as manchetes com drama pessoal ou comportamento excêntrico. Era o tipo que chegava, fazia seu trabalho com maestria, e deixava a música falar por si. Mas a música que deixou para trás é impossível de ignorar. Está em cada groove de “She Bangs The Drums”, em cada pulsação de “I Am The Resurrection”, em cada nota de “Kowalski”. Está na forma como gerações de músicos aprenderam que um baixista não é apenas alguém que preenche o espaço entre a guitarra e a bateria. É alguém que pode definir o caráter de uma era inteira. Mani fez exatamente isso. E o fez com humildade, consistência e um sorriso.


